Uns nos outros


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Rosa Pena

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Vivo rodeada de pessoas que não prestam muita atenção uns nos outros. Conjugam só a primeira pessoa de qualquer verbo. Ontem foi um dia horrível. Acordei e soube que minha muito querida amiga Marly tinha partido. Droga, ela era uma das poucas que usava sempre a terceira pessoa. 

Sai de casa derrotada e fui ao pior oftalmologista do planeta: Dr. Luciano dos "Oculistas Associados", que fez de uma 'pequena' cirurgia no meu olho esquerdo um 'enorme 'problema que não se resolve. Era um encaixe, pois nem hora tinha. E acabei perdendo um tempo enorme para nada. Nunca tenho coisa nenhuma (segundo ele), só a minha visão piora dia a dia e sempre coça demais. Delírio meu... depois que deixei uma grana lá sou olhada de forma quase hostil por não babar  ovo de médico (cultura obsoleta que todo doutor é grande e nós mínimos). 

Considerando o mundo cão sai da pet shop com uma enorme dose de amargura e parti para a Secretaria de Educação e Cultura. Urgia fazer meu recadastramento, pois esqueci de fazer no banco e fiquei sem salário. Fui no estado que sempre ando, uma calça jeans desbotada, uma sandália rasteirinha, uma camisetinha qualquer. 
Entrei numa fila imensa, pois era única existente para tratar desde unha encravada a tempo de serviço. Uma senhora a minha frente puxou assunto e contei que não havia recebido meu pagamento. Ela me disse que era merendeira e já havido pedido aposentadoria mil vezes por incapacidade, as mãos totalmente tortas de artrite. Chegou a nossa vez e cada uma foi pro seu guichê. Quando acabei, sai depressa, esgotada e cheia de fome. Comecei a andar rumo ao metrô e encontrei-a, como se estivesse à minha espera. Passamos por um ambulante que vendia empadas e suco. Eu ignorei, mas ela parou e me chamou. Perguntou se eu não queria fazer um lanche. Agradeci e neguei reticente, sem dizer do meu receio em comer num camelô de comidas. Ela pegou uma empada e um suco e fez questão de me entregar. Aceitei por educação e dei uma mordida, que me levou a traçar três inteiras. Quando acabamos eu abri a bolsa, mas ela não deixou de jeito algum eu pagar. Olhou-me toda e depois me deu 
um abraço muito forte. 
– Com fé, dias melhores virão. Vai receber seu salário e no Saara tem calças baratinhas, sabia? A vida sabe ser bonita. Vá com Deus. 

É dona Glória, (já tínhamos trocado nomes) a vida sabe sim, ainda mais quando encontramos anjos na rua. 
Certamente Marly vai ser um andando entre nós. O dia estava ensolarado e só vi o sol no fim da tarde.
A noite vou procurar a lua. Minha amiga deve estar lá rindo com São Jorge.

 
 
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 05/09/2017
Alterado em 05/09/2017
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