(quadro Kent Williams)

Ai ai ai! Assim você mata a mamãe!

Rosa Pena


 
 
Quase diariamente cruzo com vizinhos quando entro ou saio do elevador, da garagem, do prédio. Há um cerimonial que se repete nestes choques, pois encontro casual seria elogio. Às vezes (aleluia!) um momento mínimo de pausa para um desleixado cumprimento ou passamos totalmente batidos como se não habitássemos o mesmo teto, como se não usássemos dependências em comum e mais, em meu prédio, a grande maioria mora lá há mais de vinte anos, logo nos conhecemos (vemos!), no barato, há duas décadas.

Até existem aqueles temperamentais que um dia dizem um olá animadíssimo e em outros fingem que não nos conhecem. Já imaginei se não seria influência das fases da Lua ou da tábua das marés. Poucas vezes somos obrigados a negociar vagas de carros, sempre com atritos ou eleição de síndico com o aumentativo de atritos.

Nossos filhos cresceram juntos, casaram, viramos avós quase ao mesmo tempo, mas estranhamente nunca ficou estabelecida uma relação de amizade, sequer de uma saudável cordialidade.

Algumas vezes deparo-me com um olhar curioso, em outras percebo um ar meio incrédulo (como não sei interpretar esse espanto incomum: Será a sandália havaiana com vestido ou um pé só de brinco!? É muito pouco...eu resolvo criar). É porque eu sou a cara da Angelina Jolie e meu marido igualzinho ao Richard Gere. Logo o Brad tem "piti" por conta dos imensos chifres adquiridos nessa transa louca. Bem que ele podia topar um "Ménage à trois". UI!

Modéstia olvidada, pois eu realmente não sou um tipo repelente, muito menos arrogante, não possuo uma Lamborghini Reventon 2012 (a loteria jamais me apreciou), me vejo forçada a rejeitar as explicações mais óbvias, como aversão, rancor, antipatia, ódio, inveja... Egocentrismo?

Será que imaginam que um aglomerado de tijolos como o nosso edifício não passa de uma cilada transcendental, oriunda de caprichos satânicos? Que a portaria, os elevadores, a luz, as despesas de condomínio, todas repartidas entre nós é uma miragem? Talvez não idealizem a existência de outros seres vivos e normais por entre estas lajes, que provocam rumores (esses sim por vezes demoníacos), e que os vestígios de lixo ou brinquedos em que tropeçam não se resumam as tradições de uma espécie em extinção, tendo em vista que educação vem sendo dizimada enquanto pagodeiro de cabelo louro é preservado.

Quando penso em meus vizinhos percebo claramente que deve ser por isso que os moradores do interior (vivem com cadeiras na calçada) dizem que a vida urbana é alucinante. A informalidade de uma cerveja "cu de foca" tomada na saída do trabalho num barzinho bunda de fora virou Happy Hour com direito a piano com blues e pizza de rúcula. Ai, ai! Ai ai ai ai! Assim você mata a mamãe.


A novela Avenida Brasil tem retratado muito bem a diferença da alegria quase anárquica dos subúrbios com o silêncio individualista de bairros tidos como elegantes.

E aí?
"Me dá uma inveja dessa gente que vai em frente sem nem ter com quem contar”.


 
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 03/10/2012
Alterado em 04/10/2012
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