Ora só ouvir estrelas?
Rosa Pena


Entrou na boate com os planos A, B, C, D... das meninas na cabeça.
— Nada de grilos! Mulher não trai estupidamente um amor, isso é privilégio idiota de macho, mulher se vinga da traição. Vai fundo!!!!! Fica com um bonitinho e inteligennnnnnnnnnnnnnnnnnte, burro num dá nem pra beijar!
Ouviu com atenção aquelas jovens tão mais malandras que ela. Tava em crise. Quase depressão.
Plano A: dançar de rosto colado, trocar beijos à Casablanca, ver a lua na luz do néon. Adaptou o plano ao seu estilo, pois funk e seriado Sex and the City nunca fizeram sua cabeça.
Olhou com atenção os sozinhos, de preferência não muito bonitinhos, preconceito seu mesmo, belo e inteligente só o Richard Gere no cinema, fazendo papel de filósofo.
Escolheu um de óculos com o tipo do Gates: ainda estava ligada na net ou o Bill tem cara de inteligente que beija bem?
Plano B: olhar pra nuca dele. Nuca nunca falha, segundo as meninas!
Olhou fixo e ele veio.
Um homem com a voz suave, sem preocupação de se mostrar machão, disse seu nome e convidou-a para dançar. Enlaçou-a suavemente, não tentou abraçá-la com força, falar de seus predicados na horizontal ou ficar zumbindo como uma mosca presa num copo. Ambos ficaram dançando em silêncio, mas estranhamente ela não sentiu aquele silêncio melancólico que vinha sentindo nos últimos tempos. Frank Sinatra calou-se e eles saíram da pista com um ligeiro sorriso. Automaticamente, sentaram-se na mesma mesa. Olhou-o nos olhos pela primeira vez e viu por detrás das lentes duas suaves bolas azuis.
Ele perguntou se ela queria beber, comer algo, e ela esqueceu do plano C: pedir champanhe e algum canapé sofisticado. Com a espontaneidade que lhe é peculiar, falou que o queria mesmo era um sanduba com guaraná. Ele soltou uma gargalhada e disse com um jeito quase infantil: "Eu também!". Entreolharam-se, não como dois futuros amantes, mas como dois simples humanos solitários.
Ele sugeriu um quiosque no final do Leblon, onde faziam uns sanduíches gostosos. Ela concordou e saíram andando de mãos dadas, ainda não eram mãos enamoradas, apenas cúmplices das coisas simples. Foram caminhando pela orla, conversando sobre os pequenos quase nadas da vida, que viram o máximo dela. Um feijão bem temperado, uma criança aprendendo a andar de bicicleta, um cineminha em plena segunda-feira, acordar sem despertador, um feriadão com sol, uma chuva ligeira num dia abafado.
Encontraram no caminho uma carrocinha de pipoca fechada e o pipoqueiro indo embora. Ela disse baixinho que adorava pipocas. Ele implorou ao homem que fizesse seu último saco do dia, para matar o desejo de uma grávida, o neném não pode nascer com cara de sabugo! O homem sorriu e reabriu a carrocinha. Fez um saco imenso e eles correram para a praia, sem frescuras com a areia, com a hora, com a roupa bonita.

Ela constatou que realmente estava grávida, gravidíssima de afeto, não daqueles descritos em poemas, em que até cometas falam, mas sim onde economistas se calam, para ver os cabelos de uma mulher soltos ao vento, onde há trabalho sério no dia seguinte, doença na família, metrô lotado, cartão de ponto, mas também o prazer de olhar o arco-íris, ainda que pela janela do escritório. Ele é lindo em qualquer lugar.

De repente, veio a vontade de molhar os pés na água salgada e entraram no mar vestidos, sabendo que talvez ficassem gripados, imunidade só em poesia, mas para o dia-a-dia sempre existe uma Coristina.
Foi neste momento que ela descobriu que passou boa parte dos últimos tempos amando um livro. E sofreu pra dedéu num romance de papel!

Agora, recomeçava seu tempo de amar um homem-carne. Ele não era Gates, nem Gere, nem Bilac que ouve estrelas. Apenas gente, que usa terno e crachá de segunda a sexta, que sabe que não é preciso prometer o mar para provar seu amor. Um súbito telefonema, uma flor fora de hora, pequenos gestos, os quase nadas que abastecem muito mais o coração do que falsas promessas de reeditar Shakespeare.
Se ele é tudo de bom? Está descobrindo nas terças à tardinha, numas fugidinhas do expediente. Um outro quase nada que de repente vira tudo, onde não se fica só ouvindo estrelas, vai-se até elas.




Livro UI!
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 16/10/2006
Alterado em 01/08/2014
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