506


Rosa Pena



Meu sonho de consumo no início da adolescência era ter uma legítima Lewis 506. Não bastava ser jeans, tinha que ser uma 506. Naquela época, só nos USA ou na Feira da Providência, e era uma nota preta. Demorei bastante para ter uma, e só ganhei depois de encher muito o saco do meu pai. Mesmo assim ele vinculou presente a prêmio. Fazer por merecer. De alguma forma, teria que demonstrar que fiz jus ao supérfluo.
 
Naquela época eu não entendia os senões de papai, porém em minha casa não existia o tal medo que existe atualmente de traumatizar filho. Fazer todas as vontades para evitar piripaques futuros. Tínhamos que estudar pra caramba. Tínhamos que decorar a tabuada, sim. Tínhamos que ler Machado de Assis e outros mais, passar para escola pública, estudar inglês e ponto final. Papai não era um ditador, pelo contrário. Ele tinha diálogo conosco, mas não ficava especulando Freud e psicanálise.
 
Segundo seus conceitos, teríamos traumas com ou sem cultura, então que fôssemos fazer análise futuramente, com uma bagagem cultural. Que achássemos a vida seca, mas tendo lido Graciliano Ramos para saber realmente o que significa Vidas Secas. Ganhei minha 506 no dia em que escrevi uma carta pro Ziraldo e ele me respondeu de forma bastante elogiosa. Foi a glória. Para mim, o jeans, para ele, a carta.

Curti minha 506 até virar um farrapo e jurei que ela nunca viraria pano de chão. Ainda hoje tenho um pedacinho mínimo dela, guardado numa caixinha.
 
Quando a casa de meus pais foi vendida este ano, tivemos que esvaziar tudo. A estante repleta de livros, papéis e canetas. Como era gostoso ler um livro na rede da varanda, lembrei com alegria que isto jamais foi castigo.
 
Numa gaveta, encontrei uma caixa de meu pai, com a carta que me levou ao prêmio sonhado. Também ele guardou-a com cuidado e estava intacta, inteira, sem rasgo ou remendo. Ele eternamente estará me ensinando a guardar meus verdadeiros valores.
 
Andei me questionando por que fiz tanta questão de publicar um livro que agora já virou plural. Teria sido apenas vaidade? Isso até me fez mal: imaginar-me desta forma tão vaidosa. Afinal, sou mais lida no virtual, então não é isso não, papai. Valeu o toque!
 
A net talvez seja uma 506. Quem sabe não vai desbotar-se com o tempo? Provavelmente rasgará e com muita sorte restará apenas um pedacinho de meus sonhos salvos num hd.
 
Quero que meu neto encontre numa caixa meus pensamentos, as memórias do meu tempo, por inteiro. Sem estarem puídos! Talvez seja a melhor herança que deixo. Levá-lo a gostar de ler livros de papel, prazer que anda tão fora de moda.
 
Será que estou mais velha que a 506



2003

~//~

Chegou Tarja Branca ( novo livro de Rosa Pena)
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 22/05/2010
Alterado em 22/05/2010
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.





Site do Escritor criado por Recanto das Letras
art by kate weiss design