Marzão

Rosa Pena

 



— Tia, você vai voltar?
— Lógico que sim. Final da tarde estarei aqui, como sempre.
Vejo aqueles olhos assustados e minha vontade é de ficar em casa agarradinha com ela, mas o compromisso, a necessidade financeira e até mesmo o prazer em trabalhar me chama. Saio preocupada. Coração apertado.
Não sei exatamente quando começou este pânico de minha afilhada perante a vida. Acredito que esteja relacionado à perda do avô, que saiu lindo e saudável de casa um dia e depois ela só foi revê-lo em um caixão. Teve a trajetória interrompida por um ônibus em excesso de velocidade. Ou não foi isso. Não sei. Realmente não sei nada.


Esta menina vive assim. Paralisada diante da vida. Queima-se em incêndios interiores, nos quais ela fabrica o fogo. Morre afogada no seco, sofre de assaltos onde não existem bandidos, nem armas. Vive de defesas reais contra perigos inexistentes. Tão nova e já tem o seu sótão coberto de fantasmas. Minha afilhada sofre da doença do pânico. Seu medo é verdadeiro. Não finge. Não inventa.


Isso a tornou uma solitária, visto que o nível de condescendência de nossos semelhantes é bastante pequeno com pessoas que não são divertidas, que não agem e não falam exatamente da forma que nossa expectativa quer. Foi taxada de baixo astral e pronto. Aliás, esta facilidade em classificar nossos semelhantes facilita bastante a vida.
O cara é chato, é feio, é babaca, é bonzinho, é antipático, é cafona. Tais classificações psicológicas são tão preconceituosas quanto as infelizes que diferenciam os seres humanos, aquelas que me fazem sentir raiva quando ouço “os crioulos”, “os judeus’, “os gays” et cetera e tal.
O pior é que nem posso dizer a ela que isso é coisa de jovem, que um dia passa. Não é, não. Isso é a lei da vida. É a cegueira eterna da sociedade.


Esta semana começaram as aulas. Minha afilhada teve dificuldades para ir. Sem
estímulo algum, pois tinha certeza de que não teria com quem conversar sobre as férias, e os professores ainda não começariam a matéria. Ficaria sentada, sozinha, espiando seus abismos.


Esta semana, minha afilhada conheceu o Leandro sem querer. Estavam na fila da cantina, deixando todo mundo passar na frente, sem coragem de impedir que furassem a fila.

Ele veio do interior e usava uma calça jeans sem grife e tinha um ar perplexo. Olharam-se abismados com a cara de pau dos apressadinhos. Em um ato de audácia, ele sorriu e puxou a mão dela para o lugar certo da fila. Na frente de todos.
Depois se sentaram juntos para lanchar. O menino contou a ela a sensação de ter visto o mar pela primeira vez. Ela ouviu com atenção e conversaram bastante para dois jovens tímidos e inseguros.


Leandro com alegria disse a ela:
— Puxa, você foi a primeira menina que não me sacaneou por ter falado  marrrrzão. Me dá teu telefone?

Acho que vou rever a lei da vida, ou me mudar de cidade onde não tenha marzão.



livro PreTextos
2004

Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 24/08/2008
Alterado em 01/02/2009
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