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Conceito & Preconceito


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Rosa Pena


 

 

Terça-feira


Um dia normal como outro qualquer, com todos os descasos que o mundo evidencia. Na esquina aquele mesmo menino franzino, pernas bem fininhas, camiseta rasgada, sentado na calçada com seu cão... Espiando o céu! Acabo sempre olhando para o alto por causa dele. Não quero encará-lo. Eu sempre apressada e medrosa, afinal estes meninos de rua são um perigo! Entro no carro e ajeito meu banco. Dou outra olhada de esguelha e percebo que ele fala sozinho ou será que conversa com o cachorro? Olha para mim, sorri e acena. Dou um "tchauzinho" rápido apenas para disfarçar meu temor. Jogo a primeira, acelero e fecho as janelas. Tenho muitíssima pressa.

Chego correndo ao trabalho. O ascensorista assobia e me dá bom dia. Fico à espera dos outros passageiros, que saco, indócil para que ele suba logo. Olho o relógio sem disfarçar minha intolerância. Chego na secretaria, pego voando a chamada e corro para sala de aula. Reparo que ela está suja. Pergunto para "alguém", porque não foi dada a faxina. Sou avisada que o responsável adoeceu. Questiono-me internamente quem é o tal responsável que nunca vi. Não é exatamente a pergunta que deveria fazer-me! Deveria questionar-me sobre outras coisas. Dou uma aula padrão e tomo dois comprimidos de Tilenol, essa puta dor de cabeça não para.

 Esgotamento emocional adquirido e assumido. Será que ainda tenho receita para comprar frontal?



Quarta-feira

 Um dia normal quase como outro qualquer.O menininho está lá.Não me contenho, apesar do imenso temor, e chego perto. Pergunto com quem ele conversa tanto.Responde-me:— Com os bichinhos que estão no céu. Adoro o elefante que está bem lá no alto. Lembro-me que já vi  muitos carneirinhos nas nuvens e também já levei altos papos com eles.

Entro no carro e não acelero tanto. Abro totalmente a janela. Entra um vento delicioso. Chego na hora certa ao trabalho. Antecipo-me ao cabineiro:— Bom Dia! Aguardo os outros passageiros e acabo até sabendo o nome da mulher do ascensorista. Vou para a secretaria e antes de pegar o fichário pergunto pelo faxineiro. Fico sabendo que ele melhorou e já voltou a trabalhar. Chegando à sala de aula, percebo que ela está um brinco. Porque nunca tinha reparado na limpeza?

Dou uma excelente aula.Estranho...Hoje não sinto dor de cabeça. Meu frontal acabou desde ontem e eu não tenho receita.  Dane-se, aprenderei a viver sem ele.Volto para casa querendo ver o menininho.  Aliás, volto  querendo ser ele.Fase boa esta, onde se criam conceitos. Fase má a que eu andava. Criando preconceitos. O pior é que criei até comigo.Não posso ser alegre e calma num mundo tão hostil. Pega mal!  Parece piração. Cheirou o quê?

Blindei! É tanta violência que só consigo ver o mau e o feio. O bom ficou na tela daquele filme de um passado distante. Será que ainda dá tempo de voltar atrás e não ter o stress obrigatório do mundo contemporâneo? Será que vou conseguir olhar um relâmpago e pensar em chuva e não em seqüestro?

Amanhã cedinho vou tentar ver  novamente carneirinhos nas nuvens.Afinal, bem depois de Nero ter colocado fogo em Roma, de Hitler tentar dizimar a raça humana, Vinicius e Tom continuaram a sonhar. Eles não eram pirados. Eram poetas.

Fosse eu um cão! Sem medo algum dos sem nada.


livro PreTextos:2004

 

Fé cega, Faca amolada.
*
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

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Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia

Beber o vinho e renascer a luz de todo dia

 


 

 

 

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Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 19/06/2008
Alterado em 07/08/2008
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